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Hobbies

"Hobbies são manias que protegem o mundo de nossa insanidade, adquira alguns e terá menos vontade de atirar objetos sobre outras pessoas."
Viviane das Graças Vieira


sexta-feira, 21 de agosto de 2009

A MARCA DO TEMPO



O som das últimas gotas de chuva era a música da manhã, acompanhada do cântico dos pássaros que se alvoroçavam para entoar um hino de louvor pelo fim da tempestade. A luz ainda era pouca e entrava timidamente por uma brecha na janela, devido a intensidade da luz podia se dizer que o sol logo viria e brilharia em todo seu esplendor.
Porém, tudo naquela manhã que divulgava um lindo dia parecia não fazer sentido: ao olhar para o par de chinelos abandonados próximo a comoda uma desolação sobreveio.
A muito que aquele calçado estava ali, não era novo, já tinha recebido a marca do tempo, já estava gasto e para outra pessoa talves não fosse visto com bom olhos. Sua marca não era conhecida, e sua cor desbotava denunciava a baixa qualidade do material. "Estava gasto..." está expressão ecoou como um alerta da transitoriedade de tudo o que há e da precariedade que nos permitimos viver.
Ficou a pensar se, tal qual o par de chinelos, também sua vida estaria "gasta", seus sonhos, tudo pelo qual lutou. Será que tudo perde seu valor com o passar do tempo como nos ensina a sociedade capitalista? O novo que se torna velho em fração de segundos, relacionamentos com prazo de validade e os motivos tornando-se obsoletos antes mesmo de exercer sua função motivadora. Pessoas E sentimentos equiparando-se a máquinas e tecnologias com preço em declínio.
Olhava para o chinelo e todo o seu ser gemia em profundo e gélido silêncio. Aquele que foi por tanto tempo seu companheiro, confidente de cansaço e tropeços, estava agora abandonado. Seus serviços, agora, desnecessários por tempo indeterminado, mas que a cada segundo ganhava peso de anos. Os pés que os calçava perdera sua vitalidade, sua força, seu vigor...
Como o companheiro no canto do quarto seu coração pulsava um lento abandono, um sensação de inutilidade.
Quando um forte barulho de um carro interrompeu a trilha sonora de seu devaneio pôs-se a pensar no quanto o senso de utilidade nos faz rotular os sentidos da nossa vida, tudo o que existe deve ter uma utilidade e quando não mais tiver será descartada. Vivemos a era descartável, os ambientalistas gritam por um mundo sustentável e ao fim do dia sentam-se a beira de uma mesa para discutir o improvável destino do mundo e sobram de suas conversas as latas de refrigerantes vazias depositadas sobre algum balcão. Descartamos porque reciclar é um processo demorado, exige esforço, exige tempo e o tempo passa e leva com ele nossa força.
A fraqueza daquele corpo deitado a meia luz fez seu protesto com uma lágrima que trilhava pelo seu rosto já enrrugado e marcado pelo sofrimento e pelas batalhas de uma vida inteira. Outras lágrimas caíriam, mas a dor tornou-se tão forte que já não doía.
A natureza, que outrora cantava a extrema alegria, parecia silenciar-se à espera de um milagre. A porta do quarto começou a abrir timida e lentamente e uma pequenina mão fragil e ao mesmo tempo forte e decidida pode ser enxergada. Logo a presença nobre e infantil, dotada de beleza e de vida trouxe um novo som ao quarto. Os velhos e cansados olhos contemplava outros cheios de esperança e sonhos, permaneceu por um instante o silêncio dos olhares se cruzando, era como se algo estivesse acontecendo, um silêncio anestésico. Aos poucos a criança aproximava-se da cama como se pedisse licença, mas sem nada dizer. Quando percebeu obter um ligeiro e fraco sorriso como resposta a neta agasalhou-se no colo enfraquecido da avó. Suas palavras doces falavam menos que seu carinho, seu olhar de admiração tornou-se cura para o envelhecido coração. Era como se de repente os dois corações batessem no mesmo compasso, os lábios de menina pronunciaram as palavras que devolveram as esperanças e fez com que o fato do mundo, as vezes, ser tão cruel e materialista perdesse sua importância:
- Vovó me conta uma história?
Aquela mulher, não mais um corpo marcado pelo tempo, recuperava sua dignidade e diante da súplica que chegava aos seus ouvidos começou a desenhar em palavras uma história tão cheia de vida como o brilho que agora morava nos seus olhos.
Viviane das Graças Vieira

Um comentário:

Unknown disse...

Linda história Vi...adorei.